Ela era muito temente à
Deus, católica fervorosa, rezadeira de terços, ia à Missa todos os domingos e
dias santos e cumpria religiosamente todos os preceitos. Já o seu esposo, Pascoal
da Paixão, era um italiano matuto, fora ensinado à trabalhar na roça desde
muito cedo para angariar pra família o pão de cada dia. Ele não era muito de
religião, e como boa parte dos homens daquele tempo, o único entretenimento que
tinha era se afogar na bebida que trazia muitos problemas pra todos. Até ia a
Missa aos domingos, mas não aguentava esperar até o final dentro da igreja sem que
pudesse sair ao menos pra fumar um cigarro no meio do palavrório da missa que ainda
era em latim e só voltava quando o sacristão tocasse o sino, alertando para a
hora exata da consagração das espécies do pão e do vinho.
A família era numerosa,
oito filhos ao todo, sendo seis moças e dois homens, minha mãe Terezinha de
Jesus que nos contava essa história era a segunda mais velha da família, tinha
na época quatorze anos, então, meu caro leitor, vá se ajeitando no sofá, e
acalme os nervos, pois a possibilidade de ser um blefe o que vou lhes contar é
totalmente descartada, ela já não era mais uma criança para inventar histórias
do mundo das fantasias, e por se tratar de Sexta Feira da Paixão, esses casos era
muito comum. Caso queira ouví-las, basta perguntar aos seus pais ou avôs que
eles te contarão inúmeras outras parecidas. Mas deixemos de delongas e vamos direto
ao causo.
Era Sexta Feira santa, e o
povo da pequena vila de Bom Jesus do Galho se preparava para as celebrações de
logo a noite. Padre João já havia passado por ali mais cedo para confessar o
povo e deixá-los prontos pra Missa que começaria assim que o sol se pusesse. Vô
Pascoal tinha ido pra roça à contra gosto de Vò Geralda que implorou dizendo à
ele que esse não era um dia de trabalho, mas sim um dia santo de preceito. Além
de sair, o velho ameaçou ficar muito bravo com ela se continuasse com aquelas histórias
de beatas.
Depois das atividades na
roça, parou no boteco pra tomar umas pingas. Enchendo o peito, comentou com
alguns amigos que para afrontar sua esposa e o padreco da freguesia do Bom Jesus,
que falava a todo canto aquele papo de não poder comer carne, iria matar um
porco gordo pra fazer um belo assado pra comer naquela noite.
- Pascoal, não faça isso moço! Com Deus não se
brinca! Hoje não se pode comer carne, tá vendo que nem estou servindo aquele
tradicional caldo de mocotó que combina tão bem com a pinga curtida na catuaba?
Essas coisas temos que respeitar – disse o senhor Pedro, dono do boteco.
Pascoal simplesmente deu
de ombros, e foi pra casa convicto do que faria, passou direto para o chiqueiro,
pegou aquele porco, amarrou-lhe o pescoço e foi em direção à casa onde estava
sua esposa e todos os filhos entretidos em alguns pequenos afazeres da casa e
as rezas da Via Sacra.
- Geralda, prepare as panelas, vou amarrar
esse porco aqui na varanda, pois logo a noite vamos matá-lo e fazer um saboroso
assado para comermos – disse Pascoal.
Ele era um velho branco,
de olhos azuis. A pele de seu rosto ficava vermelha e sua expressão era
imponente que colocava respeito à força, todos os filhos o temiam mais que aos
fantasmas e assombrações das histórias da vó Geralda.
- Por Deus e Nossa Senhora, não vamos fazer
isso Paixão, é pecado, vamos ofender a Deus, não se pode comer carne e muito
menos matar um animal no dia de hoje.
- Deixa de conversa fiada mulher, e trate logo
de fazer o que eu mando, antes que eu me aborreça ainda mais. Ameaçou mais uma
vez.
Já passava das seis da
tarde, a mulher deixou as vasilhas no lugar pra não arrumar mais confusão e
tratou logo de ir pra igreja juntamente com seus oito filhos, pra não se atrasar
pra Missa. Todas as preces e orações daquela noite de reza foi para que o
infeliz esquecesse aquela maluquice e fosse dormir mais cedo. Mas não teve
jeito.
Chegando em casa, conta
Terezinha que o som de uma velha vitrola estava tocando alto umas músicas
estranhas que só ele gostava, na varanda de serviços o porco amarrado ao pé da
lareira com uma corda fina que o prendia ao pescoço, dormia tranquilamente, sem
poder imaginar o seu triste fim. Pascoal à beira do tanque amolava o facão,
enquanto o fogareiro aumentava suas chamas. Cada um dos filhos foi se achegando
e sentando à mesa para aproveitar um pouco mais aquele fogo tão aconchegante.
Como de praxe, seguiu-se
todos os rituais normais de como se matar um porco. Deitou-o ao chão, fez
carinho em sua barriga para que ficasse bem quieto, amarrou suas pernas umas às
outras e enquanto isso, a faca afiadíssima ía se aproximando do peito onde fica
mais próximo do coração, daí só esperar o momento certo da distração do bicho
para o golpe certeiro e derradeiro. Muitos preferem matar porcos dando lhe uma
machadada certeira na cabeça, mas Pascoal preferia daquela forma, dizia que
assim não estraga a carne e diminui a possibilidade do bicho ferido escapar.
Terminando aquele primeiro
momento, Pascoal abril a barriga do porco, arrancou os membros que não servem
para comer, tirou as tripas para pendurar no varal e deixa-la secar para fazer
linguiça e pôs o porco praticamente inteiro para assar.
Tudo correu normalmente
até aquele momento, para a tristeza de Vó Geralda, que não suportava a ideia de
seu próprio esposo ofender a Deus profanando o dia sagrado da Paixão de Cristo,
pior ainda, fazendo-o para afrontar a Deus, se retirou num cantinho da sala
para rezar. Pascoal desde a primeira hora daquele dia estava bebendo muito, já
em estado alterado, gritava e xingava terríveis palavrões que não irei
repeti-los, mas para que o leitor saiba o alto nível, já lhe adianto, o mais
leve deles era “o nome da pelada”.
Não sei se era o clima
daquele momento que era pesado demais, mas que lembro de ouvir Terezinha dizer
que porco assando no fogo, com aquela estaca que lhe atravessava o corpo, tinha
um aspecto horrível e sombrio e fora preciso muito mais tempo que o normal para
que chegasse ao ponto certo. A noite adentrava e ficava cada vez mais escura, a
névoa descia sobre o lago, e os galhos secos naquela noite, mais que as outras,
dava um aspecto de horror e nenhum dos oito filhos que ali estava à beira do
fogão tinha coragem de olhar fixamente mais que cinco segundos para aquele
cenário, mas não sabiam o que era pior, olhar para o lago, ou para aquele
angustiante porco sacrificado em honra dos deuses da zombaria.
Pascoal se irritava cada
vez mais, pois, por mais que o fogo estava alto, e tudo nos conforme, afinal de
contas ninguém na redondeza assava carne melhor que ele, mas por algum motivo
misterioso a carne nunca chegava ao ponto certo, aumentando a expectativa, e
consequentemente aumentando a embriaguez, pois não parava de beber.
Foi então, que num momento
crucial, após xingar aquele nome terrível da pelada por duas ou três vezes,
gritou “blasfemando”:
- Maldito seja o padre Pedro e toda essa gente
beata, só pode ser feitiço desse povo – e gritava inúmeras vezes sem parar –
Maldição, maldição, maldição!!
Naquele mesmo instante,
algo assustador começou a acontecer, se você meu caro leitor, tem problemas com
sono, pare de ler por aqui, não tem problemas, ficarei satisfeito em saber que
evitou ser invadido por devaneios noturnos e espectros intransigentes após
minha recomendação. Enquanto todos se entretinham com aquilo que lhe desviava a
atenção dos palavrões blasfemos de Pascoal, um pequeno barulho de brasas sendo
remexidas e pingos de gorduras no fogo, fez com que todos em unanimes olhassem
para o fogareiro.
O porco sem vida, tostando
na brasa, de uma maneira inacreditável abril os olhos, e todos puderam ver que
no lugar das pupilas haviam brasas ardentes de fogo, e para o maior terror de
todos que naquela altura estavam apavorados, os menores gritavam e correram
para se ampararem nas barras da saia da única pessoa que mantinha algum
equilíbrio emocional na hora, a Vó Geralda. Não conseguirei expressar com meu
frágil português e minha pouca habilidade de escrever o que foi aquele grunhido
que o porco deu, que parecia entrar pelos ouvidos e atingir as profundezas da
alma, como se fosse a voz suplicante de uma alma angustiada no purgatório.
O porco fumegante, aliás,
nem posso dar nome àquilo como a espécie animal mamíferos bunodontes, seria mais um pedaço de carne em
brasas, que, não me pergunte como, saltou de repente e se pôs a fugir em
debandada entre a mata escura. Uma coisa precisa ser ressaltada antes que acabe
o conto, o que meu velho avô Pascoal poderia ostentar aos ventos, era a
coragem, não conheci igual. Mesmo em meio a esse acontecimento terrível e
fantástico, o velho empunhou a garrucha e procurou pela coisa a noite toda, até
não ser mais possível segurar o sono e o cansaço daquele dia exaustivo.
No dia seguinte, o velho avô, descansado e recuperado da
embriaguez, caminhando a poucos metros da varanda em direção à mata, tentando
buscar na mente algo que lhe garantisse que aquelas vagas lembranças da noite
passada era apenas um sonho de um velho bêbado, viu um pouco a frente, uma
trilha de cinzas traçada em uma linha reta. Seguido-a até o final, pasmem! O
porco dormia serenamente, e não adianta dizer que era outro animal, pois em
suas patas se vi as marcas das cordas que à amarrou e no peito uma espécie de
cicatriz de um lado ao outro.
Mesmo continuando a frequentar o boteco do senhor Pedro, o
velho Pascoal da Paixão de Jesus Silva, nunca mais foi o mesmo, não diria que
por medo, pois o medo não é o suficiente para mudar atitudes, mas sim a
decisão. Passou a respeitar mais a religião de sua família, por muitas vezes
foi visto frequentando as quermesses e rezar com um pouco mais de devoção.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário, sua opinião é muito valiosa para mim. Um forte abraço!