Quanto ao negro representado na obra de padre Antonio Vieira, há um problema na historiografia, tanto na literatura quanto na história. Se muitos autores enaltecem Vieira – quase que num sentido humanitário – pela sua posição de defesa aos judeus e aos índios, sempre fica a questão de que em relação aos negros a posição de Vieira não era tão “moderna” e “progressista”. Mesmo Vieira hoje sendo lembrado, muitas vezes, como “mulato” devido a sua bisavó ter sido descendente de africanos, o seu tratamento para a escravidão e para com os africanos sempre foi algo complicado na imagem construída de um “teólogo da libertação”.
De fato essa
discursão sobre a imagem do negro em autores brasileiros dos tempos mais antigos
tomou corpo à medida que os debates acerca das politicas afirmativas para
negros e afrodescendentes foram tendo maior abrangência e ocupando o espaço das
discursões que se tem
colocado em pauta abertamente sobre os mecanismos de exclusão social no país,
sobretudo os referentes à questão raça/cor. O negro se constituiu como a base
da pirâmide evolucionista durante o século XIX e os estereótipos daí resultantes,
acrescidos das mazelas e estigmas da escravidão, nos dá a dimensão do alcance
da história do preconceito.
Segundo Mozart Linhares da Silva Doutor em História e
professor da PUCRS, a trajetória do movimento antirracista teve um desempenho
muito maior para a figura do negro afrodescendente do que para a figura do
indígena.
As discussões, acaloradas em alguns contextos, sobre
as ações afirmativas no Brasil possuem uma história recente. Na realidade, elas
iniciam e ganham espaço institucional com a abertura política desencadeada com
a derrocada dos governos militares. E é evidente que as questões que se referem
às políticas de ações afirmativas no Brasil dizem respeito majoritariamente aos
afrodescendentes. E é justamente em função da capacidade de organização e
conquista de espaço institucional para o debate que o Movimento Negro conseguiu
colocar suas reivindicações na agenda política nacional, ao contrário de outros
grupos, como, por exemplo, os indígenas, que ainda margeiam o campo de luta
política acerca das ações afirmativas.
A partir do tráfico negreiro
milhões de negros foram violentamente arrancados da África e exportados para
outros continentes, certas regiões africanas como, por exemplo, a Angola do
século XVII praticamente se tornaram lugares desertos, calcula-se que entre os
séculos XVI e XVII vieram cerca de 20 milhões de escravos para a América e um
quinto desse total veio para o Brasil, ou seja aproximadamente 4 milhões de
negros em três séculos de escravidão (1549-1859). Os homens e as mulheres
muitas vezes eram marcados com ferro em brasa e acorrentados para então serem
transportados em condições mínimas de sobrevivência.
Os que sobreviviam eram
posicionados na agromanufatura do açúcar, na plantação de algodão, na
mineração, no cultivo de café e também nos serviços domésticos e artesanatos, eram
obrigados a trabalhar, em média, 15 horas por dia, e sob um sol escaldante e uma
rígida fiscalização do feitor* (capataz, administrador dos trabalhadores
braçais nas fazendas e estâncias). Além disso, caso houvesse o mínimo de
desobediência das ordens, eram acometidos a vários tipos de castigos, torturas,
chicotadas, queimaduras, prisão em calabouços e etc.
O excesso de trabalho, a má
alimentação, as péssimas condições de higiene e os castigos acabavam
deteriorando rapidamente a saúde do escravo. A maioria morria depois de cinco a
dez anos de trabalho, e as mulheres passaram a abortar suas crianças ainda nos
primeiros meses de gestação para que os mesmos não tivessem a mesma sorte que
elas padeciam. Alguns escravos se arriscavam em tentativas suicidas de fugas em
busca de liberdade, outros se juntavam em pequenas comunidades, os quilombos,
para se protegerem dos capitães-do-mato, homens violentos que perseguiam e
capturavam escravos.
É nesse ambiente que as
confrarias dos pretos, que inicialmente fora inserido na vida dos negros como
uma instituição de doutrinação e catequese para as celebrações e cultos da
religião católica especificamente para negros,
tornaram-se como verdadeiros espaços e de cultos sincretista de seus
ancestrais e uma espécie de núcleos de resistência cultural e agencias de
alforria.
Segundo narra Elizete da
Silva, Mestra em História, e professora de Ciências Humanas e Filosofia da UFBA
em seu artigo Irmandade negra e
resistência escrava, sobre as confrarias:
cumprindo
a sua missão catequética e evangelizadora dentro do sistema colonial, a Igreja
fundou a confraria do Rosário em 1586, para os índios e negros, com o fim de
promover a piedade e a instrução religiosa... comprometiam-se os que entrassem
na confraria, a reunir-se naqueles mesmos dias para aprender a doutrina. Criada
com tal finalidade a Irmandade do Rosário se espalhou em todo território
brasileiro, como devoção dos negros escravos ou libertos, passando por isso
mesmo a ser conhecida como A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos pretos. (SILVA,
Elisete. 2004) Leia mais...
É na confraria da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário que o pregador jesuíta em seus sermões direcionados aos pretos ali associados, procurava justificar a escravidão dos negros através de seu discurso conformista, comparando-a ao sofrimento de Jesus. No XIV “Sermão do Rosário”, dirigido aos “irmãos pretos”, compara o trabalho nos engenhos aos padecimentos de Cristo na cruz:
Em um engenho sois imitadores de Christo
crucificado, [...] porque padecido em um modo muito similhante ao que o mesmo
Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de
dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três [...]. A paixão de Christo parte
foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e taes são as vossas noites
e os vossos dias. Christo despido, e vós despidos: Christo sem comer, e vós famintos:
Christo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões,
os açoites, as chagas, os nomes affrontosos, de tudo isso se compõe a vossa imitação,
que se fôr acompanhada de paciencia tambem tera merecimento de martyrio
(Vieira, 1945a, v. XI, p. 309-310).
Como se afirmou
acima, Antonio Vieira era um homem do seu tempo e com isso considerava que o
trabalho escravo era uma importante engrenagem
para o funcionamento da maquina mercantil e o desenvolvimento da
colônia, dessa forma considerava a comunidade dos Quilombos e a liberdade dos
negros como ameaça, condenando a fuga como desobediência ao senhor e
consequentemente um pecado:
[...] fortíssima e total, porque sendo rebelados e
cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual, de que não podem ser
absoltos, nem receber a graça de Deus, nem se restituírem ao serviço e
obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer (Vieira, 2003b,
p. 643).
Na sequência, Vieira reconhece o
caráter antagônico que representava a existência de Palmares no âmbito da ordem
escravocrata colonial, isto é, pontificou com clareza o significado da
contraposição econômica que havia entre liberdade e escravidão. Chegou a ser
indulgente com o primeiro polo da contradição, mas a sua lavra derradeira
sentenciou o seguinte veredicto contra o segundo:
Só um meio havia eficaz e efetivo para verdadeiramente
se reduzirem [as rebeliões de escravos], que era concedendo-lhe S. M. e todos
seus senhores espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naqueles sítios
como os outros índios e gentios livres, e que então os padres fossem seus párocos
e os doutrinassem como os demais. Porém esta mesma liberdade assim considerada seria
a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este
meio tinham conseguido ficar livre, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada
engenho, seriam logo outros tantos palmares, fugindo e passando-se aos matos com
todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo (Vieira, 2003b, p.
643-644).
Para ele era impossível se pensar
o edifício colonial lusitano no Brasil sem o concurso do braço escravo de
origem africana. É nessa perspectiva que os “Sermões do Rosário” vinham
revestidos de um sentido pedagógico, como vai afirmar Amarílio Ferreira Jr. e
Mariza Bittar em seu artigo A Pedagogia
de Escravidão nos Sermões de Padre Antonio Veira: “Eles foram pregados com
a esperança de que o escravo aceitasse a escravidão com base na consciência do
outro: a do senhor cristão de escravos.” (FERREIRA JR & BITTAR, 2003)
Como herança teológica da
soberania europeia, acreditava-se que os portugueses eram privilegiados por ser
a raça branca “superior” e por terem recebido a única e verdadeira religião, ou
seja, o cristianismo, dessa forma em vários trechos dos seus sermões Padre
Antonio Vieira, alertava os negros de se sentirem privilegiados de estarem
escravos nos Brasil e por isso terem acesso à fé em Cristo e assim ser possível
a sua salvação, privilégio esse que os seus ancestrais ou os africanos que
ficaram em sua nação não tiveram a oportunidade.
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