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QUEM FORAM HUGO E RICARDO DE SÃO VITOR?

Intervenção do Papa Bento XVII na audiência geral do dia 25 de Novembro de 2019

Queridos irmãos e irmãs:

Nestas audiências das quartas-feiras, estou apresentando algumas figuras exemplares de crentes que se empenharam em mostrar a concórdia entre a religião e a fé e testemunhar, com sua vida, o anúncio do Evangelho.
Hoje quero falar-vos de Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos estão entre esses notáveis filósofos e teólogos conhecidos com o nome de vitorinos, porque viveram na abadia de São Vítor, em Paris, fundada no início do século XII por Guilherme de Champeaux. O próprio Guilherme foi um professor renomado, que conseguiu dar à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de fato, inaugurou-se uma escola para a formação dos monges, aberta também a estudantes externos, onde se realizou uma síntese feliz entre as duas formas de fazer teologia, das quais já falei em catequeses anteriores, isto é, a teologia monástica, orientada mais à contemplação dos mistérios da fé na Escritura, e da teologia escolástica, que utilizava a razão para tentar escrutar estes mistérios com métodos inovadores, de criar um sistema teológico.
Da vida de Hugo de São Vítor temos poucas notícias. São incertos as datas e o lugar do seu nascimento: talvez na Saxônia ou em Flandes. Sabe-se que ele chegou a Paris – a capital europeia da época – e transcorreu o resto dos seus dias na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e depois professor. Já antes da sua morte, ocorrida em 1141, alcançou uma grande notoriedade e estima, até o ponto de ser chamado de “segundo Santo Agostinho”: como Agostinho, de fato, ele meditou muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas e teologia.
Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além de ser úteis para a compreensão das Escrituras, têm um valor em si e devem ser cultivadas para engrandecer o saber do homem, como também para corresponder ao seu desejo de conhecer a verdade. Esta sã curiosidade intelectual o levou a recomendar aos estudantes que nunca deixassem de lado o desejo de aprender e, em seu tratado sobre metodologia do saber e de pedagogia, intitulado significativamente de Didascalicon (sobre o ensino), recomendava: “Aprende com prazer de todos o que não sabes. Será o mais sábio de todos quem tiver procurado aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos, acaba convertendo-se no mais rico de todos” (Eruditiones Didascalicae, 3,14: PL 176,774).
A ciência da qual se ocupam os filósofos e teólogos dos vitorinos é particularmente a teologia, que requer, antes de mais nada, o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Para conhecer a Deus, de fato, não se pode menos que partir do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico representante da teologia monástica, totalmente fundada sobre a exegese bíblica. Para interpretar a Escritura, propõe a tradicional articulação patrístico-medieval, isto é, o sentido histórico-literal, antes de mais nada, depois o alegórico e analógico e, finalmente, o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escritura, que também hoje são redescobertos, porque se vê que no texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais profunda: o fio condutor da fé, que nos leva ao alto e nos guia sobre esta terra, ensinando-nos como viver.
Contudo, ainda respeitando estas quatro dimensões da Escritura, de modo original com relação aos seus contemporâneos, insiste – e isso é algo novo – na importância do sentido histórico-literal. Em outras palavras, antes de descobrir o valor simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é necessário conhecer e aprofundar no significado da história narrada na Escritura: do contrário – adverte com um exemplo eficaz – se corre o risco de ser como os estudiosos de gramática que ignoram o alfabeto. Para quem conhece o sentido da história descrita na Bíblica, as circunstâncias humanas parecem marcadas pela Providência divina, segundo um desígnio bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não é o resultado de um destino cego ou de um caso absurdo, como poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espírito Santo, que suscita um maravilhoso diálogo dos homens com Deus, seu amigo. Esta visão teológica evidencia a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que realmente entra e age na história, quase se torna parte da nossa história, mas sempre salvaguardando e respeitando a liberdade e a responsabilidade do homem.
Para nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu significado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira e autêntica, isto é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer sua estrutura, a ilustração dos dogmas da fé, que representa em sólida síntese no tratado De Sacramentis christianae fidei (Os sacramentos da fé cristã), no qual se encontra, entre outros elementos, uma definição de “sacramento” que, posteriormente aperfeiçoada por outros teólogos, contém traços ainda muito interessantes. “O sacramento – escreve – é um elemento corpóreo ou material proposto de forma estranha e sensível, que representa com seu parecido uma graça invisível e espiritual, significa-a, porque com este fim foi instituído, e a contém, porque é capaz de santificar” (9,2: PL 176,317). Por um lado, a visibilidade no símbolo, a “corporeidade” do dom de Deus, em que, contudo, por outro lado, esconde-se a graça divina que provém de uma história: o próprio Jesus Cristo criou os símbolos fundamentais.
Três são, portanto, os elementos que contribuem para a definição de um sacramento, segundo Hugo de São Vítor: a instituição por parte de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento visível, o material, e o elemento invisível, que são os demais dons divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com uma linguagem composta por símbolos e imagens capazes de falar imediatamente ao coração dos homens. É importante também hoje que os animadores litúrgicos, particularmente os sacerdotes, valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos sacramentais – esta visibilidade e tangibilidade da Graça –, cuidando atentamente da sua catequese, para que cada celebração dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, intensidade e alegria espiritual.
Um digno discípulo de Hugo de São Vítor é Ricardo, procedente da Escócia. Ele foi prior da abadia de São Vítor entre 1162 e 1173, ano de sua morte. Também Ricardo, naturalmente, designa um papel fundamental ao estudo da Bíblia, mas, ao contrário do seu mestre, privilegia o sentido alegórico, o significado simbólico da Escritura, com o qual, por exemplo, interpreta a figura veterotestamentária de Benjamim, filho de Jacó, como símbolo da contemplação e cume da vida espiritual.
Ricardo trata deste tema nos textos Benjamim menor e Benjamim maior, nos quais propõe aos fiéis um caminho espiritual que convida antes de mais nada a exercitar as diversas virtudes, aprendendo a disciplinar e a ordenar com a razão os sentimentos e os movimentos interiores afetivos e emotivos. Somente quando o homem alcança o equilíbrio e a maturidade humana neste campo é que está preparado para entrar na contemplação, que Ricardo define como “um olhar profundo e puro da alma dirigido às maravilhas da sabedoria, associada ao um senso extático de assombro e de admiração” (Benjamim Maior 1,4: PL 196,67).
A contemplação é, portanto, o ponto de chegada, o resultado de um árduo caminho, que comporta o diálogo entre a fé e a razão, isto é – mais uma vez – um discurso teológico. A teologia parte das verdades que são objeto da fé, mas tenta aprofundar seu conhecimento com o uso da razão, apropriando-se do dom da fé. Esta aplicação do raciocínio à compreensão da fé se pratica de modo convincente na obra prima de Ricardo, um dos grandes livros da história, o De Trinitate (A Trindade).
Nos 6 livros que o compõem, reflete com agudeza sobre o mistério de Deus uno e trino. Segundo nosso autor, dado que Deus é amor, a única substância divina comporta comunicação, oblação e dileção entre duas Pessoas, o Pai e o Filho, que se encontram com um intercâmbio eterno de amor. Mas a perfeição da felicidade e da bondade não admite exclusivismos e obstinação; ao contrário, exige a eterna presença de uma terceira Pessoa, o Espírito Santo. O amor trinitário é participativo, concorde, e comporta superabundância de delícia, gozo de alegria incessante; isto é, Ricardo supõe que Deus é amor, chegando assim à Trindade das Pessoas, que é realmente a expressão lógica do fato de que Deus é amor. Contudo, Ricardo é consciente de que o amor, ainda que nos revele a essência de Deus e nos faça “compreender” o mistério da Trindade, é, no entanto, somente uma analogia para falar de um mistério que supera a mente humana e – poeta e místico como é – recorre também a outras imagens: compara, por exemplo, a divindade com um rio, com uma onda amorosa que brota do Pai, flui e volta a fluir no Filho, para ser depois felizmente difundida no Espírito Santo.
Queridos amigos, autores como Hugo e Ricardo de São Vítor elevam nossa alma à contemplação das realidades divinas. Ao mesmo tempo, a imensa alegria que nos proporcionam o pensamento, a admiração e o louvor da Santíssima Trindade, funda e sustenta o compromisso concreto de inspirar-nos neste modelo perfeito de comunhão e de amor para construir nossas relações humanas de cada dia. A Trindade é verdadeiramente comunhão perfeita! Como o mundo mudaria se nas famílias, nas paróquias e em toda outra comunidade as relações fossem vividas seguindo sempre o exemplo das três Pessoas Divinas, em que cada uma vive não somente com a outra, mas para a outra e na outra! Recordamos isso há alguns meses no Ângelus: “Somente o amor nos faz felizes, porque vivemos em relação e vivemos para amar e ser amados”  (L’Osservatore Romano., 8-9 junho 2009, p. 1). É o amor que realiza este incessante milagre: como na vida da Santíssima Trindade, a pluralidade se recompõe de unidade, em que tudo é complacência e alegria. Com Santo Agostinho, honrado pelos vitorinos, podemos exclamar também nós “Vides Trinitatem, si caritatem vides – contempla a Trindade, se vês a caridade” (De Trinitate VIII, 8,12).
[No final da audiência, o Papa cumprimentou os peregrinos em vários idiomas. Em português, disse:]
Queridos irmãos e irmãs:
No século XII, a abadia de São Vítor, em Paris, contava entre os seus mestres Hugo e Ricardo, duas figuras exemplares de teólogos e filósofos crentes que se empenharam em mostrar a concórdia entre a razão e a fé. Hugo de São Vítor estimulava a uma sã curiosidade intelectual, considerando como o mais sábio quem tiver procurado aprender qualquer coisa de todos. Quem aprendeu o sentido da história descrito na Bíblia, sabe que as vicissitudes humanas não são guiadas por um destino cego, mas age nelas o Espírito Santo que suscita um diálogo maravilhoso dos homens com Deus, seu amigo. Deste Deus que é amor, fala Ricardo de São Vítor na sua obra sobre a Trindade. A divindade é como uma onda amorosa que jorra do Pai, flui e reflui no Filho para ser depois felizmente difusa no Espírito Santo. 

[Tradução: Aline Banchieri.
©Libreria Editrice Vaticana]

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